quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Rio quer internar adultos viciados à força

Rio quer internar adultos viciados à força


Para prefeito da cidade, está claro que usuários de crack `não conseguem tomar decisões`; plano sairá em duas semanas

O prefeito do Rio, Eduardo Paes (PMDB), afirmou ontem que vai adotar a internação compulsória até para adultos dependentes químicos. Segundo ele, a medida será iniciada ``em breve``.

Autorizada por decisão judicial no Rio, a internação compulsória de jovens usuários de crack já é questionada pelo Conselho Regional de Psicologia (CRP-RJ), que aponta ``regresso à lógica manicomial`` em abrigos mantidos pela prefeitura na zona oeste da cidade.

Paes não explicou como tornará possível a decisão. Segundo ele, as Secretarias de Saúde e Assistência Social vão apresentar em até duas semanas um plano para criação de 600 vagas para internação e tratamento de dependentes químicos.

``Vamos criar uma estrutura própria, se possível ainda neste ano, de forma emergencial. A partir da construção dessa estrutura, vamos iniciar a internação compulsória de adultos também. Está muito claro que os dependentes dessa droga não conseguem tomar decisões``, disse o prefeito.

Atualmente, há 178 vagas para internação compulsória de crianças e adolescentes no Rio. A decisão do prefeito foi anunciada depois de reunião com representantes de associações de moradores dos Complexos de Jacarezinho e Manguinhos, favelas ocupadas por forças de segurança desde o dia 14.

Uma semana depois da operação, 240 usuários tinham sido levados para abrigos da prefeitura - 224 eram adultos. A ocupação policial provocou uma migração de dependentes químicos para outras áreas do entorno, incluindo canteiros de obras em viadutos da Avenida Brasil.

Debate. Paes disse que o município vai investir R$ 220 milhões em projetos para a região. ``Não vou ficar no debate ideológico. Nossa obrigação é salvar vidas``, afirmou o prefeito.

Entrevista

`Louvável`, mas exige cuidados, diz psiquiatra

Para o presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria, Antonio Geraldo da Silva, a decisão do prefeito do Rio de abrir vagas para o tratamento compulsório de usuários de crack é ``louvável``, mas a internação só deve ser feita com a indicação de um psiquiatra, sob risco de virar ``eugenia``.

A decisão é adequada?

É louvável que um grande município resolva fazer alguma coisa, porque por enquanto estamos cometendo omissão de socorro e suicídio assistido. O prefeito está certo em querer ajudar. O que não pode haver é internação compulsória sem indicação médica. Não podemos banalizar, senão vira eugenia social.

É uma medida efetiva?

Sim, tem bastante efetividade, quase no mesmo nível da internação voluntária. Mas para isso tem que ser em um serviço que tenha qualidade e respeite as necessidades específicas de cada paciente. Não se pode confundir internação com isolamento social ou prisão.

Quais características que o local de internação deve ter?

Deve contar com equipe multidisciplinar, psiquiatras e outros profissionais. Tem que ser um local especializado, sob pena de se fazer de forma incorreta.

Entrevista

Decisão de Paes é `higienista`, afirma psicóloga

Para a presidente do Conselho Regional de Psicologia no Rio, Vivian Fraga, a decisão de internar compulsoriamente usuários de crack tem caráter ``higienista``.

A decisão é adequada?

É uma decisão política, não técnica. Há mais de um ano que estão internando crianças e adolescentes e a secretaria de Assistência Social não tem dados sobre a efetividade disso. Muitos saem dos abrigos e continuam usando drogas.

Por quê? Quais os problemas da política atual?

Desde 2011 temos feito fiscalizações nos abrigos e o que vimos é que não atendem o que a política pública preconiza. Eles têm uma lógica higienista. Pegam a pessoa em Manguinhos [zona norte] e colocam lá em Santa Cruz [zona oeste].

Isso afasta o convívio da família, que é importante. E é uma lógica medicamentosa. Não é feito nenhum trabalho para mudar a relação da pessoa com a droga.

Como tratar, então?

A gente propõe que a porta de entrada sejam os CAPS (Centros de Atenção Psicossocial), e que, nos momentos de crise, a pessoa seja internada num hospital até se estabilizar. A ideia é que seja tratado por um profissional no seu território.

Saiba mais

No país, 90% aprovam a internação

Pesquisa Datafolha realizada em janeiro apontou que 90% dos brasileiros aprovavam a internação involuntária de dependentes de crack. O percentual cai entre os moradores do Sul (86%), os que têm ensino superior (84%) ou renda acima de dez mínimos (79%). Foram ouvidas 2.575 pessoas em 159 cidades.

Ação na cracolândia de São Paulo teve 1.176 internações voluntárias

Balanço do governo de SP aponta que, na operação da cracolândia, no centro da capital, realizada no início do ano, houve 1.176 internações, mas todas foram voluntárias.

Segundo o coordenador estadual de políticas sobre drogas, Luiz Alberto Chaves de Oliveira, só há internação sem a concordância do usuário de drogas quando há laudo médico (internação involuntária) ou decisão judicial (internação compulsória).

Ou seja, não cabe à prefeitura ou ao Estado decidir, diretamente, se o usuário deverá ser internado, conforme prevê lei federal de 2001.

``Além disso, todos os indivíduos toparam a internação, ou seja, foi voluntária``, afirmou o coordenador estadual.

A operação na cracolândia envolve Estado e prefeitura, em ações policiais e de saúde.

Oliveira afirma que já houve internações voluntárias ou compulsórias no Estado, fora da operação da cracolândia.

CRÍTICAS

No início da operação no centro de São Paulo, quando se levantou a possibilidade de haver internações compulsórias, o candidato à prefeitura pelo PT, Fernando Haddad, criticou a ação -agora adotada pela gestão Eduardo Paes, no Rio, alinhada ao PT.

No final da tarde de ontem, Haddad foi procurado pela Folha para comentar a decisão do aliado Eduardo Paes, mas não foi localizado.

O Ministério da Saúde afirmou ontem que não iria se pronunciar sobre o assunto.

Análise

Abrigar, isolar ou tratar os dependentes de drogas?

IVONE STEFANIA PONCZEK

ESPECIAL PARA A FOLHA

As notícias sobre a disseminação do uso do crack têm sido alarmantes desde sua entrada no Rio de Janeiro há cerca de seis anos.

No Núcleo de Estudos e Pesquisas em Atenção ao Uso de Drogas da Universidade do Rio de Janeiro (Nepad-Uerj), 70% dos pacientes que chegam são usuários de crack.

Várias iniciativas polêmicas têm sido tomadas visando esvaziar as cracolândias, levando suas populações para abrigos e encaminhando menores para internação compulsória.

Na área da saúde mental, tal medida ficou identificada com prisão, isolamento, tortura e maus-tratos, que realmente aconteciam antes da reforma psiquiátrica.

O uso de drogas foi recentemente descriminalizado e a identificação vinculando internação a punição ficou muito forte. Urge desmontar esta associação que impede que os usuários procurem e aceitem ajuda.

Fala-se da internação compulsória, mas onde seria esta internação, mesmo que não fosse compulsória? Quais equipes iriam cuidar destes pacientes? Abrigar não é tratar!

Não há quase locais para internação de adolescentes no Rio, nem equipes capacitadas para acolhê-los e efetivamente tratá-los.

Se houvesse, poderia transformar a internação compulsória no direito de tratamento que a Constituição garante: ``saúde é um direito de todos e um dever do Estado``. Tal mudança de enfoque é fundamental e faz toda a diferença.

O tratamento para dependentes de droga requer uma equipe interdisciplinar de saúde capacitada para as especificidades desse atendimento.

A internação deve ser pautada em rigorosos critérios de elegibilidade, tais como risco de vida ou de terceiros, descontrole no uso de drogas ou pedido espontâneo de ajuda, etc. Não há ``pacotes de tratamento`` que ignorem a singularidade do sujeito.

`MÃES-MENININHAS`

Outrossim, a triste visão das cracolândias, que lembram as cenas do Holocausto -onde o ser humano é reduzido à sua mais degradante condição-, é mesmo chocante, não pode ficar invisível. As intervenções públicas não devem incidir apenas nas consequências, mas também nas profundas causas sociais e psicológicas.

Por que as pessoas, sobretudo as mais desamparadas, estão se drogando tanto?

O governo tem que intervir em saúde, educação, prevenção e numa distribuição de renda mais justa.

Esta vulnerável população é constituída predominantemente de jovens e crianças relegados à sua própria sorte.

Elas não brincaram de ``bandido e mocinho``, estes fazem parte do seu dia a dia. E as bonecas não são de brinquedo, são filhos de gestantes precoces que já vêm predestinados a repetir o triste destino de suas ``mães-menininhas``.

IVONE SFETANIA PONCZEK é psicanalista e diretora do Nepad (Núcleo de Estudos e Pesquisas em Atenção ao Uso de Drogas) da Universidade Estadual do Rio de Janeiro

Fonte: FELIPE WERNECK / RIO - O Estado de S.Paulo
http://www.advsaude.com.br/noticias.php?local=1&nid=9727

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