segunda-feira, 5 de novembro de 2012

A droga, todos e qualquer um

Debate em torno da “internação compulsória” pode esconder desejo higienista e eugênico de isolar os dependentes, terceirizando um problema que bate à nossa porta


Como dizem os portugueses, trata-se de uma “conversa em tranças”. Pesquisa recente do Instituto Datafolha identificou que 90% dos brasileiros aprovam a internação compulsória dos dependentes de crack. A aprovação decai na medida em que os entrevistados têm mais escolaridade e/ou renda, ou se moram mais ao Sudeste e Sul do país. Mas, ainda assim, é bastante alta a simpatia com a hospitalização de dependentes químicos – à revelia da vontade deles.

Tudo indica que se trata menos de um consenso social e mais de uma desinformação sobre os meandros da drogadição, pouco compreendida como doença e ainda alardeada como vício, logo sujeita à força de vontade. O movimento social, a propósito, anda em estado de alerta, soltando o verbo contra os governos e prefeituras brasileiras que adotam a internação compulsória. Os casos mais notáveis são o Rio de Janeiro e São Paulo. Mas é possível encontrar, em uma cidade como Curitiba, a defesa apaixonada de que as ambulâncias entrem em ação.

Os argumentos são bem intencionados. O crack tem poder tal sobre as pessoas que não se pode contar com sua consciência. Esperar que os dependentes decidam por tratamento equivaleria a assistir, calado, a um suicídio. Em entrevista à Gazeta do Povo, inclusive, o promotor de Justiça da área da infância Murilo Digiácomo lembrou que não haveria no Estatuto da Criança e do Adolescente nada em contrário à internação – desde que seja o caso extremo. O estatuto costuma ser usado como argumento para reprovar a hospitalização compulsória de pessoas com menos de 18 anos.

A fala de Digiácomo é irretocável, pois se escora na “proteção integral”. O problema, contudo, permanece “em tranças”. Requer-se estrutura adequada para esse tipo de ação – órgãos de direitos humanos já identificaram que alguns centros de amparo se assemelham a depósitos, nos quais a presença de psiquiatras e profissionais especializados é frágil como a casca de um ovo. Outro perigo latente é que os arrastões para identificar e levar dependentes ganhem um caráter eugenista e higienista, como alertou o presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria, Antônio Geraldo da Silva.

Sabe-se do incômodo da população diante das legiões de drogaditos em situação de rua, marcados pela mendicância, cruzando, errantes, as cidades. Não poucos desejam a ação zás-trás do poder público, “limpando” os espaços urbanos dessa paisagem “qual o inferno de Dante”. Há quem os tema, associando a violência ao uso da droga, o que não é uma relação tão imediata assim, já que é o tráfico – inclusive o que acontece nos escritórios da droga – o propagador do crime.

A alegação de “higienismo” não deve ser descartada, em absoluto. Rejeitá-la equivaleria a desconhecer o impacto de drogas como o crack e sua complexidade em graus nunca vistos. A sociedade, em miúdos, está diante de um problema novo, que não é passível de ser solucionado de maneira imediata. Do contrário, em nome do avanço o que se promove é uma regressão aos tempos anteriores à luta antimanicomial. Foi graças a ela que os hospitais psiquiáticos passaram por reformas e que os Centros de Assistência Psicossocial se tornaram uma política de governo. O mesmo se diga dos hospitais-dia, entre outras terapias com até 25% de êxito. Não é índice desprezível. Nem é tudo.

Em meio ao debate público da internação compulsória é importante não perder de vista que a drogadição não é problema só do Estado. Nem apenas dos desafortunados que conhecem a dependência e suas famílias. Trata-se de uma epidemia, que já não escolhe esse ou aquele. A mesma sociedade chamada a se organizar para discutir e coibir a violência e a pobreza é aquela que precisa arregaçar as mangas para que tantas vidas não sejam interrompidas pelas drogas. Não se trata mais de clichê, mas de uma realidade que bate à porta. Estamos vulneráveis. A comoção nacional em torno do ex-modelo Rafael Nunes, até há pouco vivendo nas ruas de Curitiba, chamou atenção para a proximidade da droga. De todos e de qualquer um.

FONTE:  Jornal GAZETAN DO POVO - OPINIÃO
http://www.gazetadopovo.com.br/opiniao/conteudo.phtml?tl=1&id=1314873&tit=A-droga-todos-e-qualquer-um

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